Clínica pública oferece tratamento para dependentes químicos
Outubro 15, 2009
De cabelos alinhados e unhas bem-feitas, Fernanda(*), 29 anos, fala animada e
com desenvoltura sobre seus planos para o futuro: cursar Administração, morar
com a mãe, praticar natação, pintar quadros e atuar como voluntária numa escola
pública. Suas metas também incluem largar as drogas, definitivamente, frequentar
o grupo de Narcóticos Anônimos (NA) e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps).
Após um ano de adaptação social, pretende procurar emprego.
Fernanda consumiu cocaína todos os dias durante 14 anos e crack por seis meses.
"Estou limpa há 36 dias", comemorou a jovem no final de setembro. Internada
desde agosto na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) de São Bernardo
do Campo, Grande São Paulo, ela ocupa um dos 28 leitos de internação da primeira
clínica pública do Brasil, criada com filosofia diferenciada para atender
especialmente aos dependentes químicos.
Resultado de parceria da Secretaria da Saúde com o Grupo Bandeirantes e a Uniad,
vinculada à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a clínica começou a
funcionar no final de março e já recebeu mais de uma centena de pacientes
diagnosticados com grave intoxicação. A unidade da Unifesp já existia, mas
ganhou nova estrutura de atendimento após o convênio com o Estado.
A psiquiatra Alessandra Diehl, diretora clínica da unidade, informa que a
reclusão só é recomendada quando o dependente químico não consegue manter a
abstinência pelo tratamento ambulatorial ou internação domiciliar (em casa, com
o apoio da família). Quando essas alternativas são ineficazes, o médico
aconselha a internação, desde que seja a vontade do paciente. "Aqui não é
pronto-socorro. Recebemos pessoas com mais de 18 anos e só por indicação
médica", informa a diretora Alessandra.
O tratamento gratuito é oferecido a partir do encaminhamento de pronto-socorro,
Unidade Básica de Saúde (UBS), serviço ambulatorial, enfermaria psiquiátrica de
hospital geral ou Centro de Atenção Psicossocial (Caps), unidade de saúde da
rede municipal. O paciente recebe assistência multidisciplinar com terapeuta
ocupacional, nutricionista, educador físico, psiquiatra, psicólogo, conselheiro
em dependência química, enfermeiro, assistente social e outros. O custo diário
da assistência chega a R$ 100 por paciente.
Desde o primeiro dia de internação, Fernanda segue intensa rotina organizada por
equipe multiprofissional. Ela e os demais internos despertam às seis da manhã e
vão para a cama por volta de 23 horas. A programação diária inclui atividades em
grupo de educação física (nas áreas verde e interna), enfermagem, terapia
ocupacional, assistência social, palestra de conselheiros dos Alcoólicos
Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA).
Para as mulheres e para homens
Há grupo feminino de discussões. A psiquiatra Alessandra diz que elas sentem
vergonha, são marginalizadas pela sociedade e demoram mais que os homens a
procurar o tratamento: "A interna tem menos apoio familiar que o homem. Nem
sempre o companheiro vem visitá-la. Geralmente é separada ou a relação está
desgastada". No futuro, a diretora pretende reformar outros 30 leitos da clínica
e ampliar o atendimento às mulheres.
A médica observa que entre os homens a situação é oposta: a esposa frequenta a
clínica regularmente. Para o sexo masculino, os profissionais de saúde abordam
trabalho, família, perdas: "Eles lamentam terem ingerido álcool a vida toda
porque atingiram certa idade e não construíram nada, se tornaram impotentes
sexuais e ainda dependem da família. O apoio familiar é fundamental para a
continuidade do tratamento após a alta". Por isso, uma vez por semana os
parentes participam de discussão em grupo. "Certa vez, os pais fizeram festa
para comemorar a alta do paciente. Por um triz a pessoa não voltou a beber.
Mostramos que os mais próximos também precisam responsabilizar-se pela
abstinência", alerta a psiquiatra.
A participação dos parentes é expressiva, afirma a psicóloga Juliana Marinho.
Informa que só há ausência em casos de desestruturação ou dificuldade
financeira. Para reforçar a importância do apoio desses membros, a diretora da
clínica planeja firmar parceria com instituição especializada em orientação de
familiares de dependentes. "Pela primeira vez o serviço público oferece
internação com equipe multidisciplinar e os 12 passos baseados no AA e NA para
auxiliar o tratamento de dependentes químicos", diz a psicóloga. Conselheiros
terapêuticos das duas instituições são contratados para bate-papo diário com os
internos, que auxilia a recuperação dos dependentes.
Kauã(*) é um dos conselheiros do NA. Está longe da bebida e da droga há cerca de
nove anos: "Passo a experiência de como é gostoso viver limpo". Kauã ensina que
o paciente tem doença incurável, independentemente do uso da droga. Por isso,
precisa estar sempre de bem com a vida para evitar recaída.
No decorrer do tratamento, o paciente ganha fichas de cores branca e laranja,
que indicam ingresso no NA e afastamento das drogas por 30 dias. "Recuperei a
autoestima e a dignidade. Aqui, o atendimento nem se compara ao de uma clínica
particular, de R$ 3 mil por mês, onde fiquei internada e tive recaída", frisa a
jovem paciente. "Em breve, após a alta, o desafio será lá fora. Alta clínica não
quer dizer sucesso no tratamento", ressalta a psiquiatra.
A pintura em tela na terapia ocupacional é uma das atividades de que Karla(*)
mais gosta. "Fugi das drogas, mas me tornei dependente de álcool há tantos anos
que nem me lembro quando comecei. Só sei que de dois anos para cá piorei. Era
estoquista de álcool", recorda. Ela está internada há mais de um mês e diz que
aprendeu a valorizar a vida e lamenta ter ignorado o papel de mãe, pois as
crises frequentes a distanciaram do filho de 9 anos. Para o futuro, planeja ser
boa irmã, cuidar do garoto e trabalhar com o ex-marido.
Durante as aulas, a terapeuta ocupacional Marina Rodrigues estimula a ampliação
das habilidades. Os internos rompem a dificuldade inicial de expressão, soltam a
criatividade e produzem mosaico, decoupagem, pintura em tela. Uma das motivações
para a abstinência é o esforço de largar o vício "só por hoje", como ensina um
dos 12 passos do AA e NA. A expectativa é de que a meta diária se estenda até o
fim da vida.
Abstinência
Em média, o dependente fica internado de um mês a 45 dias, de acordo com o caso
pode estender-se por mais tempo. Segundo Alessandra, cada pessoa recebe atenção
e cuidado individualizados "num ambiente livre de preconceitos. Recebemos
médico, morador de rua, homossexual, transexual. Priorizamos o respeito,
independentemente de sexo e posição social". Em geral, os 15 primeiros dias da
internação é o período mais crítico da desintoxicação. O dependente de álcool
pode sentir tremor, náusea, vômito, suor intenso, febre, insônia e até
alucinação auditiva e visual. Oscilação de humor, irritabilidade, ansiedade e
insônia são as principais queixas do usuário de drogas em abstinência. Sem
contar a fissura pelo produto químico.
De acordo com a pesquisa, 41% dos internados estão desempregados e 55% deles são
solteiros; 30% concluíram o ensino médio e 7%, o ensino superior. Em relação à
renda familiar, 29% ganham entre dois e três salários mínimos e 21%, mais que
cinco salários mínimos. A idade média dos pacientes é 34 anos. As principais
consequências entre os dependentes químicos são o transtorno afetivo bipolar, os
transtornos de personalidade, a depressão recorrente, a esquizofrenia, obsessão
pelo jogo, o transtorno de déficit de atenção e a hiperatividade
Dependentes usam vários entorpecentes
Quase metade dos pacientes (48%) atendidos na Unidade de Pesquisa em Álcool e
Drogas (Uniad) de São Bernardo do Campo é dependente de mais de uma substância.
As mais comuns são cocaína, crack, maconha, álcool e cigarro. Esta é a
constatação de pesquisa realizada com pessoas tratadas ou em atendimento na
primeira clínica pública de dependência química do País.
"A predominância de usuários de múltiplas substâncias se deve também ao fácil
acesso. O perfil destes pacientes é extremamente marcado pela impulsividade e
compulsão das mais diversas (sexo, jogos, compras). São os chamados dependentes
cruzados, onde cada droga entra num contexto de aliviar o estado causado pela
outra, como, por exemplo, excitação e calmaria", afirma a psiquiatra Alessandra.
Quase 40% deles têm grau de dependência grave de álcool e 30%, leve. Em 38% dos
casos, a unidade registra problemas relacionados ao uso de drogas em nível
severo. Apenas 2% são atribuídos como nível leve. Do total de usuários
atendidos, 75% têm alta clínica e apenas 3% abandonam o tratamento. Nos seis
meses de funcionamento, houve a reinternação de apenas quatro pacientes.
Jovens seguem exemplo da família
Metade dos adolescentes que consome bebidas alcoólicas demasiadamente tem pai ou
mãe que também ingere álcool com frequência, aponta pesquisa do Centro de
Referência em Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod). O levantamento baseia-se
nos atendimentos da unidade, realizados entre 2002 e 2009, com 512 pacientes
entre 12 e 17 anos, que apresentaram sintomas preocupantes quanto ao uso de
bebida alcoólica. Do total de pessoas ouvidas, 86% são do sexo masculino.
Desses, 256 afirmaram ter parentes que também fazem uso abusivo de álcool.
Para 4,36% dos entrevistados, o álcool é a droga mais consumida. Entre aqueles
que apontaram o álcool como droga principal, 22% começaram a beber aos 13 anos e
15%, aos 11. "O alcoolismo é uma doença que demora a ser diagnosticada. Não é um
vício que se consolida rapidamente. Jovens que começam a beber precocemente
preocupam porque com o passar dos anos esse hábito pode transformar-se em vício.
Iniciar o vício com pouca idade ocasiona sérios danos à saúde", afirma o
psicólogo Wagner Abril Souto, autor da pesquisa e coordenador do programa de
adolescentes do Cratod.
Serviço
Uniad recebe relatório médico de caso grave de intoxicação somente pelo FAX (11)
4353-5437. Paciente sujeito à triagem
Cratod oferece tratamento gratuito para dependentes de álcool, tabaco e outras
drogas. Fica na Rua Prates, 165 - Bom Retiro
(*) Nomes fictícios
Fonte: Agência Imprensa Oficial
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